Thursday, March 31, 2005

O planeta de Damião Experiência

Aparente mendigo de Ipanema, obscuro cantor experimental tem popularidade crescente na Internet enquanto planeja lançar-se no rock pesado


Camuflado entre garotas de Ipanema e moradores de rua, ninguém imagina que aquele senhor de 70 anos, maltrapilho e cheio de dreadlocks, é na verdade um cantor e compositor de música experimental com 34 discos gravados, citado por Nelson Motta e com uma legião de fãs no Rio, São Paulo e Recife - onde foi realizada uma festa-tributo a sua obra. Facilmente reconhecido pela turma underground, comerciantes e moradores de Ipanema, o homem que atende pelo nome de Damião Experiência vive num mundo só seu, o Planeta Lamma - de onde brotou um idioma próprio -, e deseja agora lançar uma nova banda, desta vez de rock pesado.
Em seus primeiros discos, Damião tocou gaita e violão de uma a cinco cordas - além de um chocalho de tampinhas amarrado no braço do instrumento. Com o tempo, atingiu o ápice de seu requinte musical cantando junto de uma banda com guitarra, baixo e bateria. Sons distorcidos e frases às vezes em português, noutras no idioma criado por ele, o “lammês”, são uma constante em seus álbuns, muitos deles com letras improvisadas, inventadas na hora da gravação. Nunca tocou nas rádios - para o prazer dos fãs avessos a modismos -, já que algumas de suas canções são ora sexualmente explícitas, ora carentes de refrões e estruturas convencionais. Sozinho, gravou, prensou, embalou e vendeu pelas ruas de Ipanema todos os seus discos, hoje artigos raros em sebos de São Paulo e Rio. Com títulos inusitados como “Bar”, “Luz” e “Gás”, as músicas contêm versos como “eu gosto é de apanhar de mulher”, e “lugar de trabalhador é na prisão”, delineados por uma mistura de psicodelia, blues, folk e baião, com guitarras e letras muitas vezes enigmáticas.
A última apresentação de Damião Experiência - também intitulado em seus próprios discos como Daminhão Experyença, Damião Experiença, Daimeão Experiência e afins - aconteceu no Ballroom em dezembro de 2000, após ser descoberto pelo fotógrafo e DJ Maurício Valladares, um dos mentores da histórica rádio Fluminense FM, a “Maldita” que apresentou ao Brasil boa parte do rock nacional que surgia nos anos 80. Damião chegou ao Ballroom com seu violão, cuidadosamente amarrado num saco de lixo, e tocou algumas de suas canções para um público extasiado, como os cantores Toni Platão e Fausto Fawcett. “Estava meio adoentado...”, lamentou Damião, temendo (em vão) uma platéia decepcionada. Sua estréia na imprensa teria sido em 1977, numa coluna de Nelson Motta no extinto Jornal de Música e Som, em que descrevia o som de Damião como “uma transação intergaláctica que engloba guitarra de uma corda só, gritos lancinantes e estratosféricos misturados a letras de um planeta que só ele sabe o nome”. Hoje, cerca de 15 bandas são escancaradamente influenciadas por Damião, segundo seu site oficial, o Portão do Damião, construído por fãs membros de uma banda de rock de São Paulo.
A Internet tem se revelado um grande veículo de propagação da obra damiônica. No Orkut, o site de relacionamentos, a comunidade feita em homenagem ao cantor conta com mais de 200 participantes. A principal presença na Internet, porém, é mesmo o Portão do Damião, catalogando boa parte da discografia que nem o cantor tem. Na mídia impressa, Damião sequer imagina (ou se lembra) que já se tornou pauta de revistas de música como Outra Coisa, ou da Folha Informática, do jornal Folha de São Paulo. Do seu exílio no Planeta Lamma, fica ainda mais difícil acreditar que em Recife uma festa foi feita em sua homenagem. O tributo foi até noticiado pelo Jornal do Commercio, de Recife, no dia 11 de setembro de 2004, data do evento que contou com audição de boa parte da discografia do cantor, exposição de fotos, entrevistas, livro, site, idéias e pensamentos damiônicos. “É sério isso mesmo? Nem fiquei sabendo... quer dizer que estão valorizando meu trabalho antes de eu morrer?! Mas como essa turma gosta do meu som, se não entendem nada do que eu digo? É loucura...”, surpreendeu-se, enquanto os fãs, por sua vez, garantem realmente existir algum nexo no dialeto.
Os responsáveis pelo site afirmam que Damião possui fãs até no “Japão, Estados Unidos, Rússia, Finlândia e Piracicaba”, enquanto o cantor garante já ter morado e se apresentado em Cuba e Trinidad Tobago. No Rio, a valorização do maluco-beleza é tímida, apesar de ser possível encontrá-lo diariamente pelas ruas de Ipanema, onde mantém um apartamento próximo ao Morro Cantagalo. “É só um depósito onde eu guardo as coisas que coleciono. Eu moro no Recreio”, avisou. Seria uma desculpa para conter a peregrinação dos fãs? “Eu moro no Recreio. Não tá vendo que não dá pra ficar aqui?”, responde, irritado. Entrar em seu apartamento em Ipanema é atravessar um portal rumo ao Planeta Lamma: caminha-se por pilastras construídas com as mais diversas bugigangas, sapatos velhos, lençóis, óculos, até atravessar corredores formados por todo o tipo de objetos, sem nunca pisar no chão. Para chegar ao que seria sua cama, é preciso escalar pilhas de almofadas e se amontoar a um palmo do teto, no espaço em que, num apartamento convencional, seria destinado ao banheiro. “Gosto de colecionar coisas, mas a casa já está me expulsando”, justifica, enquanto procura pelos controles remotos do aparelho de DVD e da TV seminovos, depositados em meio à desordem predominante.
Avesso a entrevistas, muito pouco se sabe a respeito de Damião. Segundo contou oficialmente numa autobiografia lançada junto de um de seus discos, ele nasceu Damião Ferreira da Cruz, em Portão, interior da Bahia. Cansado da violência do pai, fugiu de casa e foi para o Rio aos 13 anos. Desde então, morou com garotas de programa - e foi cafetão de algumas delas -, entrou para a Marinha, foi preso por deserção, voltou à Marinha onde trabalhou como operador de radar até sofrer um acidente, se aposentar, e dedicar seu tempo exclusivamente à fusão de ruído com música.
Talvez sua mais controversa vertente seja a adoração por Adolf Hitler, cuja foto inclusive consta em algumas capas de seus discos. “Eu não sou nazista”, garante, para logo depois negar o que acabara de afirmar e se dizer judeu. Posteriormente, inicia um longo discurso sobre os descaminhos do governo Lula, “aquele avião luxuoso? É um absurdo!”, comenta, para em seguida, lucidamente, explicar os motivos de sua admiração disfarçada na revolta. “Você acha que vivemos numa democracia? Quando um policial me vê descendo um morro, me bate na hora, não tenho direito nenhum. Quem é o homem mais rejeitado do mundo? Não é Adolf Hitler?! Então, se é assim, eu gosto dele e pronto. Não vivemos numa democracia? Pois então que seja!”, explica, irritado.
A forma como viabilizou suas experiências sonoras - cujo sobrenome artístico foi inspirado em “Jimmy Hendrix Experience” - é apenas mais um dos mistérios que rondam sua vida e obra, sendo a suspeita mais óbvia a pensão que recebe como aposentado da Marinha. O cantor, porém, afirma ter viabilizado seus primeiros discos através do dinheiro que obtinha como cafetão. Atualmente, Damião continua seu retiro pessoal, sempre compondo novas músicas - apesar de estar há 13 anos sem gravar -, e planejando aventurar-se no rock pesado. O que falta para isso acontecer? “Nada”, responde, enquanto seu olhar se perde num ponto qualquer do apartamento - o Planeta Lamma, quem sabe. Ao ser perguntado sobre o seu misterioso mundo, Damião cantarola, em bom português: “É o planeta que eu criei, em que eu vivo e me sinto bem...”. Em seguida, embola a língua e declama naquilo que seria seu dialeto, sua invenção; e assim, em transe, submerge em seu próprio planeta, abnegado, sequer dando alguma importância à ode que é feita país afora em ovação a sua camuflada forma de viver.

3 Comments:

Blogger Eliza Araújo said...

a "obra damiônica" foi foda

já ouvi falar dessa figura, aqui em campos tem público interessado e inclusive portador de vasto material, rs. quero ver qdo a verena vai fazer um tributo digno dos comentários lá. rá!
|P

adorei a reportagem, qdo vc vai escrever para o globo, hun?

10:23 AM  
Anonymous Anonymous said...

tá escrevendo bem felipe.
vou procurar conhecer a obra damionica. lei rou lei
pomps

12:21 PM  
Anonymous Anonymous said...

Bonjour, campodeconcentracao.blogspot.com!
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5:32 PM  

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