Wednesday, May 18, 2005

O chá nosso de cada dia dai-me hoje

Como acontece o ritual do Santo Daime, a Doutrina que prega o uso de um chá para entrar em contato com a divindade


Ao pôr do sol, muitos carros param em frente a uma casa comum na praia de Itaipuaçú, há cerca de uma hora do Rio. Homens e mulheres uniformizados, vestindo gravatas e vestimentas de cor azul-marinho, cumprimentam-se efusivamente enquanto se dirigem ao quintal, nos fundos do domicílio, e sentam-se em simples cadeiras munidos de violões e instrumentos de percussão. Tendo ao fundo o som de crianças brincando, o grupo calmamente entoa algumas canções, pouco a pouco se concentrando ao redor de uma mesa igualmente simples na qual está um crucifixo duplo – e onde, ao invés do corpo de Cristo, está a representação de um cipó, um dos elementos que compõem o Santo Daime.

A música – chamada de “hino”, espécie de mantra cujos versos são repetidos a cada duas vezes - é a senha para os membros começarem a beber o chá sagrado, sua “hóstia líquida” repleta de mitos e mistérios, relatos de alucinações e realidades paralelas. Homens pela direita, mulheres pela esquerda; sem nunca se misturarem, todos se dirigem a um “altar” sem a mínima pomposidade em busca de uma dose – um copo americano cheio – do líquido marrom com gosto de azeitona e terra. Sim, todos os convidados têm que ingerir ao menos uma dose, como ritual de iniciação, conforme explicou Roberto Alexandrino, dono da casa/igreja e membro no comando daquele ponto de Daime, um dos “fardados”, como chamam, única hierarquia existente na Doutrina que, se aceita doações como qualquer religião, tem como peculiaridade não buscar agregar fiéis.

Princípios do Chá
Enquanto o mundo briga pela intitulação de porta-voz de Deus, a Doutrina, intrinsecamente brasileira, reúne ensinamentos das mais diversas religiões: católica, candomblé, espiritismo, budismo. Os hinos, cujas letras cantadas aos ritmos de marcha, valsa e mazurca contêm princípios de amor, caridade e fraternidade, são mantidos em língua portuguesa nos diversos lugares do mundo onde a Doutrina já está propagada, com cerimônias acontecendo a cada 15 dias e nas datas consideradas santas – segundo o calendário cristão. “Muitos vêm aqui querendo conhecer o Santo Daime, mas acabam conhecendo a si mesmos”, apressou-se Roberto aos convidados, no caso, o repórter e os cinco estudantes de cinema que filmavam um documentário sobre a Doutrina.

O chá seria produzido através de duas plantas nativas da floresta Amazônica: a Ayahuasca e o cipó Jagube, que possibilitariam uma expansão da consciência responsável pela experiência de contato com a divindade através do auto-conhecimento. Segundo seus membros, é necessário abster-se de bebidas alcoólicas, sexo e carne três dias antes de sua ingestão - e o uso do chá fora da Igreja é totalmente não-recomendável. O Daime teria sido ensinado na década de 20 diretamente por Nossa Senhora da Conceição ao seringueiro Irineu Serra, o Mestre Irineu, após ingerir a bebida na região de Brasiléia, no Acre. O chá, por sua vez, seria uma receita (modificada) dos povos Incas, fugidos para a Amazônia após a invasão espanhola. E o nome proveniente do verbo “dar”, citado nas orações de pedidos a Deus (“dai-me paz”, “dai-me amor”, por exemplo).

A Ayahuasca, ou “corda dos espíritos”, em quíchua, possui substâncias controversas mundo afora. Enquanto alguns definem suas propriedades como alucinógenas, os daimistas preferem o termo enteógeno – do grego “theos” (Deus) e “gen” (que gera ou desperta). E se religiosos brasileiros são presos no exterior acusados de tráfico internacional - nos Estados Unidos a Suprema Corte discute a legalização -, no Brasil o uso do chá é avalizado pela Constituição Federal e pelo Conselho Nacional de Drogas. Atitude em conformidade com parecer da ONU, favorável ao consumo da folha de Ayahuasca, que contém a substância dimetiltriptamina (DMT), proibida em diversos países.

Chá de beber
Dez minutos após ingerir a quantidade devida, porém, julgando-me excessivamente sóbrio, desejei outra dose. Afinal, não é raro crianças tomarem doses controladas desde a barriga da mãe. E eis que, de repente, vejo luzes estranhas brilhando no céu. Olho ao redor: estão todos ensimesmados, meditando. Obviamente, sequer cogitei atrapalhar o contato alheio; embalei na minha própria visão, crendo numa manifestação divina proporcionada pelo maravilhoso chá de Santo Daime. Só mais tarde dei-me conta: era um balão.

Além de inúmeros desses artefatos, o céu de Itaipuaçú contém também estradas aéreas; passageiros apressados sequer imaginando que abaixo de seus pés um grupo de pessoas estaria absorto numa alta viagem paradoxalmente tão intensa quanto tranqüila. Assim desenrola-se o ritual: momentos infindáveis de meditação, intercalados pela voz grave do fardado. Silêncio; todos de postura ereta concentrados no próprio umbigo. Até que Roberto declama alguns versos, os violonistas ferem o mais sutil dos acordes, fazendo os corpos se moverem, emergirem de seu confinamento pessoal e, gradativamente, degrau por degrau, os percussionistas pulsam mais um hino e todos começam a cantar num coro sussurrado e tranqüilo. Assim, cerca de 30 pessoas atingem de seis a até 12 horas de culto.

Após algum tempo, resolvo levantar um pouco e ir até a varanda, onde as crianças – filhos dos membros da Doutrina – brincavam hiperbólicas, sem a menor preocupação. Nada mais senti além de uma sonolência e um grande estado de tranqüilidade e auto-confiança delineando os pensamentos. Aos poucos o relaxamento foi consumindo de tal forma que a única vontade era deitar no chão. E assim fiz durante um certo tempo, até dar-me conta de que todos estavam exatamente naquele estado de absoluta imersão individual – e de que deitar-se, na própria grama até, era uma atitude bastante comum ao ingerirem o Daime.

Os efeitos foram semelhantes entre os futuros cineastas que tomaram a mesma dose. Segundo Roberto, cada um tem uma reação diferente; alguns enjoam, vomitam e têm até diarréia, mas esse estado reflexivo costuma ser o mais comum na primeira vez. Só a continuidade traria efeitos mais intensos. “Há casos muito isolados de pessoas que enlouquecem, se suicidam, mas obviamente têm diversos outros fatores, problemas psicológicos até, que o indivíduo já traz consigo para chegar a tal ponto”, contou. Para tirar a dúvida, tentei mais uma dose.

Os hinos embalam os pensamentos até que algo inusitado desvia a atenção: ao lado, um homem começa a chorar, soluçando; outro, começa a tremer, como quem tem uma convulsão ou incorpora um espírito. Os demais continuam meditativos, como se nada estivesse acontecendo – alguns até se retiraram para um cômodo especial, segundo Roberto, “para usar o dom da mediunidade. Há incorporações na Doutrina, mas é tudo muito reservado. Aquele homem tremendo estava apenas se limpando de influências negativas”.

Já na volta para casa, relaxado do ato de reportar e ainda sentindo o corpo levemente abatido, permito-me então fechar os olhos. Aos poucos, surgem visões de rostos desconhecidos, bastante nítidos e diversos, compondo um mosaico em preto e branco das mais variadas faces – experiência que, por exemplo, não conseguiria repetir agora redigindo esta reportagem. Em seguida adormeci; e não pude saber se aquelas alucinações fazem parte da realidade ou se foi tudo apenas a ficção de um sonho.

6 Comments:

Anonymous Anonymous said...

Muito bom, lipe!
Muito bom mesmo.
Deveria ter ido. Até mesmo porque eram meus companheiros de faculdade, os futuros cineastas. rsrs
Sabe, lendo a sua reportagem, o que mais me intrigou foi a religião em si, sendo que a curiosidade suprema girava sempre em torno do entorpecimento causado pelo chá.
Ele acaba sendo um detalhe.
Um detalhe até bem bonito, por sinal.
rs

=*

1:51 PM  
Anonymous Anonymous said...

Nos fundos de uma casinha lá no parque corrientes vc vai conhecer o que é um MOSAICO de verdade....
ligue-me!
Parabéns maluco. Muito bom!

Rodrigo Florencio

5:22 AM  
Anonymous Anonymous said...

Matérias tem continuação, segunda parte ou algo do tipo? Fiquei curiosa acerca dos fundamentos religiosos(apesar de não ser muito chegada, depois de 4 antropologias sempre acaba ficando uma certa curiosidade antropológica, hehe). Adorei o título.

Muito curioso. Me deu vontade de ir lá tb.

"E A Verdade nos libertará". rs.
Beijos.

Obs.: Que absurdo é aquele? Como é que um cara que me deixa dias sem dormir, sem sair, me faz engordar tamanha ansiedade, vira nome de boate!? PQP! Profanação!

9:40 AM  
Blogger Vitor Menezes said...

Esse pessoal vende o chá engarrafado?

2:25 PM  
Anonymous Anonymous said...

Acho que desde meus 17 anos eu quero tomar essa budega, não sei bem pq.
pode ser que eu cague feito um bêbado, durma feito um desidratado ou vomite feito anêmico.

Mas eu quero. Me dá a garrafa.

11:07 AM  
Blogger Elfei said...

Honestamente me surpreendi, talvez não concorde em toda integralidade com os preceitos ou a forma com que os preceitos foram transmitidos, misturando conceitos totalmente distintos sobre determinados temas religiosos.

Afora o fato de achar que em determinado trecho houve uma certa ironia (a do balão), acho que compreendi a matéria como um todo desnuda de preconceitos a respeito de algo que é muito pouco conhecido Brasil Afora(ou na verdade é pouco difundido pelas mídias de massa - o que é positivo).

Anos atrás assisti a um documentário sobre esse tal chá, este documentário foi bastante cinico, diga-se de passagem, e o repórter um idiota(acho que foi um especial do SBT).

Mas a questão me foi levantada agora é que é curiosa.

Um amigo meu, recentemente mencionou sobre esse tal chá e disse, com todas as letras, de que eu estava precisando conhecer essa tal religião, resumindo, precisava "me conhecer" melhor e que muitos dos meus "problemas atuais" tem relação direta com a ausência de autoconhecimento.

Achei interessante a priori, mas fico confuso, já que alarmistas afirmam que se trata de uma droga e quando se fala de problemas psicosomáticos fala-se de mim(afinal, tenho vitiligo desde a infância, uma doença que influecia diretamente na pigmentação da pele e que tem relação direta com o sistema nervoso e psiqué), afora a gastrite de origem nervosa que tive por toda a minha adolescência.Também desenvolvi uma maneira muito metódica de lidar com tudo em minha vida.

Ou seja, sou o perfeito candidato ao enlouquecimento ao aderir a esse tipo de chá não sou?!

Aí restam milhares de dúvidas, mas enfim, só conversando com um "pregador" ativo dessa "religião" para entender de fato do que se trata, porque genericamente o discurso é sempre carente de profundidade não é!?

9:38 PM  

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