Saturday, April 23, 2005

A Lapa é pop

Mais boêmia rua da Lapa, Joaquim Silva reúne esdrúxulos episódios numa espécie de carnaval underground


Reduto da boemia carioca, a Lapa tem nos finais de semana um certeiro ponto de encontro de pessoas transadas e alternativas: a rua Joaquim Silva, depois de interferida pelo prefeito César Maia às vésperas das eleições municipais, volta às suas melhores noites concentrando o público que se aglomera entre o Circo Voador e as outras opções da redondeza. A rua, tomada por gente, reúne todo o tipo de pessoa, classe, raça, credo; como num carnaval, cuja fantasia predominante é o antiestilo.

Nunca a Joaquim Silva esteve tão cheia desde a áurea época pré-César Maia, quando o prefeito caçou o alvará de vários estabelecimentos. Hoje, novamente, os bares tocam desde o hip-hop ao samba tradicional. A única regra parece ser não ouvir o que é possível ser conferido nas rádios tradicionais. Isso, claro, quando as músicas não são caladas pelo batuque de baterias de maracatu, por exemplo, que abrem espaço na multidão como uma típica banda de carnaval. Por toda essa intensa movimentação, a clássica casa de shows Semente agora só abre às quintas-feiras, com apresentações instrumentais de José Paulo Becker e convidados.

E novos bares continuam surgindo e incrementando a diversidade de estilos do local. A mais nova opção é a boate Lapa Night Club, inserida exatamente em frente à Joaquim Silva, usando a arquitetura dos Arcos como uma espécie de Portal. Num ambiente formigando assim, é de se esperar que os mais esdrúxulos acontecimentos sejam possíveis. Como o ambulante que vende cerveja e usa um tamborim como ferramenta: a cada produto vendido, um tem como destino o organismo do próprio vendedor.

Apesar de receber estrangeiros e públicos de todas as classes sociais, por vezes o local choca até os mais ferrenhos freqüentadores: botequim pé-sujo é uma coisa; mas tosco que é tosco mesmo tem até cachorro morto dentro do banheiro, para a completa ojeriza dos presentes. Já essa foi um cliente assíduo que contou: dois guris, com menos de dez anos, estavam no banheiro do mesmo boteco. Ao tentar entrar ouviu:

- Sujou! Sujou!
O outro guri logo surgiu, intercalando:
- Qualé cara, usa o banheiro aí...
Depois de fazer suas necessidades, o cliente assíduo passou pelo balcão e escutou um dos moleques falando sobre ele com o dono do bar:
- Aí Seu Francisco, ele quer uma coca (pausa para o silêncio constrangedor). Pega Seu Francisco, ele vai comprar uma Coca-cola pra gente...
Detalhe: isso aconteceu um dia antes do cachorro aparecer morto dentro do banheiro, junto de uma nova grade na única janela existente e de um cadeado na porta de acesso à parte reservada do banheiro.

O ponto culminante, contudo, é mesmo a Escadaria de Santa Theresa, cuja extremidade desencadeia na famigerada Joaquim Silva. Antigo ponto de encontro de amigos, hoje seus primeiros degraus têm a presença constante de uma viatura policial fazendo girar ininterruptamente seu sinal luminoso. Era apenas o que faltava: pôs-se, então, uma caixa de som no local tocando música eletrônica, casando perfeitamente com as luzes dos policiais, como uma boate em concordância com o poder público. Sendo que, com menos de 15 passos rumo aos altos da escadaria, os freqüentadores do local continuam exercendo muito tranqüilamente suas atividades, sem o menor constrangimento. Os policiais até entram no clima, cantarolando com perfeição as letras estrangeiras gritadas por uma rouca caixa de som. Há até mesmo um locutor oficial. Lá pelas 4h ele avisa:

- Aí galera, quem quiser fumar sobe logo, estamos indo embora!
Na Escadaria, enquanto a neblina avança na noite, um casal segurando cestas passa gritando:
- Anti-larica! Olha a anti-larica aí galera, apenas um real!
Feliz idéia. Teriam feito MBA em Marketing?
- Não, apenas alguma pesquisa de campo, respondem os empreendedores. Na compra de suas esfirras, o cliente ainda leva um guardanapo de brinde.

Enquanto isso, pessoas sorridentes passeiam contemplando – apesar da irritação nos olhos – aquela arte imensa e ascendente (ou descendente, dependendo do ponto de vista). Um grupo de amigos confraterniza-se numa roda, até que de repente chega um rapaz perdido na noite, puxando papo com uma garota que puxava um cigarro.

- Oi..., disse.
- Oi. Senta aí, ela respondeu.
O minuto seguinte era marcado por uma ligeira troca de cheiros e pelo soar de bocas tribalistas. Línguas, pescoços, transpirações. Pequena pausa:
- Roberto.
- Vanessa.
Retorno aos movimentos anteriores. Nova pausa:
- A Lua está linda hoje...
- É verdade..., ele responde, fascinado, junto com ela, pela luz do poste que iluminava aquele mais novo trabalho do cupido pós-moderno. Em seguida saem cambaleantes em direção à vizinhança de outros casais escorados num muro próximo.

E definitivamente toda ficção parece ser possível naquele pedaço do Rio de Janeiro. Porém, para a incredibilidade geral da nação lapense, uma hippie resolveu ser fiel ao estereótipo: levantou ligeiramente sua longa saia e, sem a menor cerimônia, urinou no meio da multidão. Em seguida ela riu, desenfreadamente, como quem achou aquilo tudo muito bonito. Uma realidade torpe, turva, mas que, afinal, não poderia ser diferente em se tratando da mais movimentada rua de um dos mais boêmios bairros do Brasil.