Friday, May 27, 2005

Fora do ar

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Sentado no sofá, com a TV ligada num canal fora do ar, ele olhava repetidas vezes para aquela misteriosa carta.
“Fui ao Sex Shop e lembrei de você”
Nada mais havia. Num papel, quase do tamanho do envelope, constava apenas a intrigante frase e, o pior, seguida pelo seu nome no cabeçalho. Tentou frear os pensamentos.

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Largou a carta em cima da TV e acendeu um cigarro. De pé, observou a fumaça sair espessa, com pressa, indo de encontro aos insetos em volta da lâmpada. Assim ficou noutras três tragadas, importunando besouros enquanto conjeturava sobre aquele estranho bilhete. Seria uma pueril brincadeira de algum vizinho? Quem sabe uma ex-namorada, saudosa, buscando conforto nos sufocantes quarenta e vários anos?

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Caminhou até a cozinha em busca de um copo d’água. Sentiu o líquido descer por cada poro, gelado, arrefecendo o coração. Observou as formigas passarem corredias no azulejo, em fila, cada uma carregando um pedaço de pão. Voltou à sala. A carta o encarava.

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Não, não podia ser nenhum vizinho. Nas fronteiras de sua rotina, sempre cercou sua intimidade com poderosas trincheiras. Pode-se dizer, no máximo, que tinha qualquer tipo de familiaridade com o farmacêutico, o português da padaria ou o dono da locadora, em fugazes conversas sobre a mudança do tempo ou o novo imposto do governo. Deitou-se, encarou a TV; já fazia meia hora que saíra do ar.

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Entretendo-se com as lembranças, imaginou suas antigas mulheres, onde estariam, como estaria se estivesse com alguma delas. Começou pela primeira, Enila. Por ela, logo na estréia, já abdicara de tudo: amigos, farras... congelou a vida social borbulhante da juventude. Trocou tudo por ardentes momentos a sós; muitas e muitas noites em acampamentos inspiraram dois dedicados pesquisadores das posições sexuais.

E Maíra, a Louca?! Não pôde conter o riso ao lembrar-se dela. A época da descoberta do sexo rotineiro em seus mais minuciosos detalhes. Engenhocas, alquimias. Fantasias à beira do rio, gemidos sussurrados, quase enrustidos; orgasmos explícitos, calados por quedas d’água. Tão louca, a Maíra. A mata jamais foi uma cortina para suas fantasias. E aquela vez, em pleno cinema?! Nunca um espectador importou-se tanto em catar as pipocas no chão... Ah, Maíra, Maíra... que dom, que magia ela tinha.

A última mulher que se aninhou em seus braços, havia tempo, é verdade, mas a angústia latente sugeria uma época estranhamente recente. Nunca entendeu por que Eliane jamais o procurou. Pudica, talvez tenha achado excêntricos demais os brinquedinhos, trejeitos e técnicas apresentadas, como fazia a cada novo relacionamento. Balbuciou impropérios, balançou a cabeça; tentava afastar os pensamentos. Evitava lembrar suas felicidades extraviadas.

Em qual momento abandonara o gosto pela vida?, nem ele sabia. E, na verdade, sequer se importava em descobrir. Para quê?
Uma lágrima desceu até seu braço e escorreu pelo pulso, cortando as rugas.

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De repente a TV voltou. Passava um programa de auditório no qual uma celebridade instantânea narrava seu intenso dia-a-dia. Foi sacudido de volta à realidade. Nesse momento, um vento frio, perdido, invadiu a janela e arremessou a carta aos seus pés. Ele a encarou; flexionou o canto da boca. Sem cerimônias, amassou e jogou a carta pela janela, amontoando-a junto aos outros panfletos da pré-divulgação daquele nova loja que se instalava no bairro. Depois deixou a TV num canal fora do ar, aumentou o volume e ficou lá, estendido no sofá, hipnotizado pelos pontinhos branco e preto se revezando na tela, compondo as imagens que passavam em sua mente. Sentia nitidamente as perninhas de insetos e formigas caminhando em seu corpo.

Cruzou os pés e pôs as mãos na nuca. Embaralhando o tímpano, ouviu o chiado da TV se converter no som de uma cachoeira. Assistia suas melhores lembranças, abstraído, olhos suados, cansados de correr atrás do passado.