Thursday, May 12, 2005

A esquina da saudade

João Paulo Arruda

Saiu do cemitério a passos lentos, como quem olha distraidamente a rua. Por falta de compromisso, andou pelas ruas sem objetivo, observando as fachadas aqui, ali. Pequenas lembranças agora sem testemunhas, que vinham à mente na forma do café tomado em fofocas, políticas ou não, do cigarro aceso sem pressa, curtindo uma tarde de sexta-feira que morria placidamente, à espera da semana seguinte. Por ter saído de um lugar de morte, lembrou do enterro do pai. Poucas vezes tinha tomado café com o pai no Centro. Olhando para trás, as oportunidades perdidas pareceram tantas. Naquele dia, do enterro, tudo isso lhe passou pela cabeça. Enquanto contemplava o pai pelos últimos minutos, últimos, últimos, o desespero e a impossibilidade de voltar o relógio e reviver o não vivido golpeavam seu peito com uma dor jamais experimentada. Uma dor sádica, que não mataria, ao contrário, lhe dava a mórbida confirmação de que o manteria vivo. Para sentir. Enquanto caminhava, lembrou que trancara as dores bem no fundo. Em algum lugar escuro, de onde ela nunca saía por inteiro, para não matar o hospedeiro. Onde estaria essa dor agora? Ele só percebia uma bruma leve, a sensação de que ela existia, mas não viria por inteiro para visitá-lo agora, a despeito da porta aberta às lembranças.

Pensar no pai, na morte do pai, o fez caminhar para a antiga rua de sua casa. Parou na esquina e ficou alguns minutos olhando os ônibus que passavam. Sorriu ao se dar conta de que, mesmo agora, adulto e usando disfarce de adulto, continuava não vendo nenhum grande pecado em jogar ovos nos ônibus que passavam. Ulisses era o que corria mais rápido. “Pulmão de cavalo!”, gritava a molecada quando ele avermelhava as faces de crente e disparava mais rápido que campeão do Grande Prêmio Brasil. Ulisses avisava da chegada do ônibus e quase sempre era o primeiro a atingir a esquininha, como era conhecido nosso ponto de encontro, depois de já ter jogado seu ovo. Os outros quatro ou cinco vinham pouco atrás. Adrenalina que se juntava à satisfação nas ocasiões em que os ovos ultrapassaram a janela e acertavam os passageiros. Nem quando se tornou petista considerava a atitude condenável. Sujava os outros, o proletariado trabalhador, sem dúvida. Mas nunca matou ninguém. E foi sensacional no dia em que o ônibus desviou sua rota, tentou caçar a turma e parou na esquininha. Todos tinham devidamente planejada sua rota de fuga. Não tinham passado parte de sua infância vendo “Os canhões de Navarone” à toa. Se bem que para a situação ficaria mais conveniente “Os doze condenados”. Mas ele teria vivido mais, sofrido menos, se tivesse continuado a jogar ovos toda vez que precisava implodir. Para o bem ou para o mal.

Pensou de novo na esquininha e teve vontade de acender um cigarro. Sorriu de novo ao lembrar de Paulinho. Sempre os dois, na esquininha. Fumando de madrugada, porque o hábito ainda era segredo de polichinelo para seus pais e os outros moradores da rua. O gosto daquele Hollywood que os deixava tontos, mas com um prazer diferente, o sabor indescritível de fumaça que só os fumantes conhecem. Nenhum Hollywood repetiria jamais aquele gosto. Mas que bom que tinha existido. Ali, entre uma tragada e outra, combinavam estratégias para inscrever o time no campeonato. Mil escalações foram cogitadas, uniformes das mais variadas cores e tipos rechearam o imaginário. No fim, claro, o uniforme era o velho de guerra emprestado de um time que viveu suas glórias duas décadas atrás. A escalação, feita ao mais organizado estilo cata-cata, redundava em fracassos retumbantes, empates heróicos, vitórias sangrentas. Nunca foram campeões. Mas que bom que tivesse havido campeonatos.

Lembrou-se de que o pedacinho de varanda onde sentavam, encostados na grade, pertencia à casa de dona Leonor. Um mistério da humanidade o fato de dona Leonor nunca ter chamado a polícia ou jogado um balde d’água naquele bando de garotos desocupados que passavam parte das noites acampados nas bordas de sua varanda e embaixo de sua janela. Será que ele tinha isolamento acústico. Ou não via a novela das oito? Jamais saberia. Nunca entrara na casa de dona Leonor. Zero em perspectiva histórica. E pensar que ali, provavelmente, decidira ser jornalista. As histórias que lhe pareceram incríveis na época e que mesmo hoje dariam um bom conto. O mítico negão Qualhada, exímio fabricante de pipas e torturador de garotos da vizinhança nas horas vagas. Fosse Qualhada da idade que narravam as lendas e tivesse ele realmente cometido metade das atrocidades que lhe foram atribuídas, entraria no Guiness. “Psicopata em tempo integral” seria o verbete. Ali soubera da história real dos Catorze, um grupo de arrombadores do Turfe. Exatamente catorze. Bandidos hábeis, os melhores ladrões de casa já organizados em bando. Caçados e mortos um a um, eram substituídos. Duas gerações dos Catorze até o bando perder a força. Mas, talvez até para virar lenda, todos morreram cedo. Que garoto não gostaria de fazer mil perguntas a um dos Catorze? Paulinho dizia que conhecia um ladrão que tinha conhecido alguém que fora primo de dois dos Cartoze. Foi o mais perto que chegaram.

Saiu andando em direção à esquininha e quando chegou ficou lá, ficou só parado. Teve vontade de sentar na pontinha da varanda, mas teve a impressão da borda ser muito curta. Ou ele teria crescido? Espantou o pensamento, até porque se sentiria ridículo sentado sozinho na rua, mas lembrou que fizera isso várias vezes. A esquininha parecia um vasto cenário de programa de variedades. Ali, emocionado, aos 14 anos, achara que sabia o que Fernando Sabino queria dizer com “fazer da queda um passo de dança, da procura um encontro”. Ali também trocara informações com Paulinho, Evandro e Ulisses sobre as tímidas experiências sexuais: “peguei no peitinho, ela deixou por uns dois minutos”. Ali também se revoltara ao lado dos amigos ao saber da morte de Abobrinha. Engraçada a proximidade ingênua que tinham com o mundo crime. Ou talvez o mundo do crime fosse mais ingênuo. Abobrinha, bem mais velho, batia uma bola com eles às vezes. Sempre na moral, com boas piadas, histórias engraçadas. Só não falava da profissão. Era ladrão de toca-fitas. Morreu numa tocaia, oito horas da noite. Ninguém soube por que. Ou quem.

Sentiu que a tarde caía e teve vontade de sentar no meio-fio. Driblou o receio e sentou. Pareceu não chamar a atenção do pequeno grupo de garotos que chegara até a esquininha e começara a combinar um mini-torneio. Três times. Lembrou que no seu tempo, as peladas ali sempre começavam mais tarde. Sob a luz do poste, era o melhor estádio do mundo para um campeonato de gol pequeno. Traves de madeira, times organizados e nem o gramado do Maracanã substituiria o piso macio dos paralelepípedos que arrancavam tampos dos dedões do pé. Principalmente porque o jogo era duro. Quase riu alto quando lembrou de Duda. Violento e orgulhoso da fama de mau, Duda, diziam, bateria até na mãe se ela avançasse pela ponta direita. Pelo menos no irmão ele batia. Éramos testemunhas. Nosso estádio não tinha lateral, pois havia um muro em cada lado da rua, claro. Num dos lados morava um médico legista. Contavam histórias terríveis sobre ele. E para confirmar a antipatia, tinha um muro chapiscado de cimento. Perfeito para arrancar uns centímetros de pele quando caíamos nos arrastando nele por causa de uma jogada mais dura. Numa dessas, Evandro dominou a bola coladinha ao muro. Denis, a menos de dois metros, veio com sede de sangue e mandou o pé para a dividida. Evandro puxou a bola e durante muito anos sempre houve quem garantisse que o pé de Denis ficou colado no cimento do chapisco. Enquanto lembrava, a bola veio em sua direção. Passou pertinho, mas ele não tentou dominar. Um garoto veio, passou ao seu lado devagar e pegou a bola para continuar a pelada. Saiu fazendo embaixadinhas e pareceu não notá-lo. Ele reparou bem nos garotos e se deu conta de que já não conhecia nenhum. Talvez aquele magrinho, com a camisa do Botafogo. Devia ser, meu Deus!, bisneto de dona Leonor.

Anoiteceu e ele, sentado sozinho na esquininha, lembrou-se das noites parte solitárias passadas ali. Um alívio para a rua, quando o bando não estava. Mas, para desespero dos velhos ranzinzas e afins, eles iam chegando um a um. Como corvos. Recordou as noites de histórias de fantasmas e riu da ironia. Quando estavam todos juntos, eram terríveis. Certa vez, jogando ali, na esquininha, um grosso deu um chutão na bola, que explodiu no paredão da casa de Salim e foi parar, por cima da grade alta, na varanda da casa da mulher que tinha cinco cachorros. Ninguém tinha coragem de pular. O jeito foi tocar a campainha e pedir a bola. Ela cometeu o erro de dizer que não ia devolver. Houvesse uma bola reserva e não teria havido guerra, em razão do compromisso mais importante que era a pelada. Mas, na falta de bola reserva, convocou-se o conselho de guerra, que deliberou ali na esquininha e resolveu atacar. Ao suprimento inesgotável de pedregulhos, juntou-se uma inesperada verba de um dos adultos que tinham simpatia por eles. Devidamente aplicados os fundos na compra de rojões de São João, começou o ataque. Durou duas horas. Yasser Arafat teria ficado orgulhoso daquela intifada em solo tão distante da Palestina. Ao fim do cerco, a reivindicação foi atendida. Infelizmente, como toda guerra, aquela também deixou baixas. O papagaio, que não foi socorrido a tempo pela mulher, mais preocupada em guardar seus cinco cães traumatizados, acabou morto, violentamente atingido por um rojão. Foram caçados pelo marido da mulher, quando chegou, mas conseguiram escapar. Naquele tempo parecia que ninguém morria.

Sorriu de novo, se dando conta de que a vontade de fumar havia passado. Por algum motivo irracional, sentiu que os cigarros já fumados nunca passariam. Como as peladas, as histórias. Simplesmente estariam ali, na esquininha, sem que ninguém precisasse lembrar. Teve a impressão, num relance, de ver o pai passando pela esquininha, como fizera centenas de vezes, a pasta de contador, o andar apressado, os sapatos gastos. Por um instante, sentiu que a qualquer momento poderia voltar à velha casa para jantar com os pais e por isso não teve pressa. Sorriu como se já soubesse, quando, um a um, Paulinho, Ulisses, Evandro, Duda, chegavam e sentavam, sorrindo, em silêncio. Simplesmente ficaram todos ali, sentados, invisíveis aos novos moradores que voltavam do trabalho.