Su casa, mi casa
Como a população carente luta por moradia e foge do rápido e gradual processo de favelização do Rio
Na madrugada do dia 26 de abril deste ano, três sem-tetos dormiam sob a marquise do prédio do INSS, no centro do Rio, quando um grupo de cerca de 300 militantes, estudantes, trabalhadores e sem-tetos passou por eles e arrombou a porta do edifício, dando início à Ocupação Zumbi dos Palmares. Os moradores de rua continuam lá, mas agora têm como vizinhos cerca de 120 famílias, muitas com crianças, cuja principal luta é a conquista definitiva de uma residência longe das ruas e do crescente processo de favelização do Rio.
O pescador paraense Severino Ramos, 25, morador das calçadas do edifício há cinco anos, foi uma das pessoas a ter sua "casa" invadida no dia da ocupação do prédio há 20 anos abandonado. Ao seu lado mora a também paraense Maria do Socorro Miranda, 47 anos, 15 deles sob a marquise do mesmo prédio. Cinco meses depois da ocupação, ela entrou em contato com os novos moradores do imóvel: queria reclamar de entulhos arremessados do alto do edifício.
"Já tentei morar ali, mas dizem que não tem mais lugar", afirmam.
São 20 quartos distribuídos em sete andares, alguns transformados em salas de reunião, de estudos e até oficina de serigrafia, cujas camisas com o logotipo da Zumbi já foram para Alemanha e Suíça. No oitavo andar, os moradores tentam retomar obras paradas na época do INSS e construir outros aposentos. Segundo eles, novos moradores devem atender a dois requisitos: participação nas reuniões e concordância com o regimento, que inclui itens como proibição de drogas no interior do edifício e trabalho pela manutenção do local.
Apesar da lotação, muitos não resistem às incertezas ou obrigações do regimento. Assim, o último a entrar para a Zumbi foi Josilésio "Ferrugem" de Almeida, de 42 anos. Ele trabalhava numa Kombi-lanchonete, em Niterói, até que a prefeitura acirrou a repressão aos ambulantes. Veio para o Rio e comprou um "pedaço de chão" por R$ 500 no centro da cidade. Depois de cercar o local e pôr uma lona como teto, não pôde mais pagar pelo espaço ao ter a Kombi rebocada. Nunca tentou resgata-la, sabendo que não teria condições de pagar a documentação atrasada. Dormiu por alguns meses com a mulher e mais três filhos no Campo de Santanna, quando então conheceu a Zumbi através de João de Souza Barbosa, 44 anos, militante desde os 16.
Na luta por moradia no Brasil há até estrangeiros. O peruano José Leonardo (nome fictício) busca asilo político no país depois de sofrer ameaças de morte ao denunciar o governo de Lima, capital do Peru. De 1983 a 1995 ele foi funcionário da Secretaria de Defesa dos Direitos Humanos, até que denunciou ao jornal "La Razon" esquemas de corrupção, violação de direitos humanos e morte de 60 mil camponeses. Trabalhou como motorista até se exilar no Brasil, há 2 anos, ao lado da mulher e três filhos. Depois de morar de favor, encontrou apoio numa das várias ocupações do Estado.
"No Brasil encontrei muita solidariedade. Nem penso mais em sair", diz.
O amanhã
No dia seguinte à ocupação, o INSS entrou com um processo contra a Zumbi, avaliado pela juíza Salete Maria Polita Maccaloz, da 7ª Vara Federal. Um mês depois, a juíza visitou pessoalmente o prédio e constatou um estado de degradação não condizente com o argumento do INSS de que o local recebia manutenção periódica. Além disso, considerando a situação social dos ocupantes, determinou que antes da remoção deverão ser consultados o Conselho Tutelar, em vista do grande número de crianças, o Ministério Público, para garantir os direitos humanos, e a prefeitura para definir um destino às famílias. Atualmente, a conta de água e luz é dividida entre governo municipal, estadual e federal.
Os ocupantes exaltam o artigo 5º, inciso XXIII da Constituição, segundo o qual toda propriedade pública deve ter função social, e o artigo 6º que estabelece a moradia como um direito social. Daí o lema pendurado numa faixa em frente ao prédio: "Se morar é um direito, ocupar é um dever". Ressaltam ainda a promessa de campanha de Lula de que transformaria prédios públicos desativados, principalmente nas áreas centrais degradadas, em moradia para a população mais pobre.
Até o momento, há um convênio entre o Ministério das Cidades e a Previdência Social prevendo a transformação de 1.073 imóveis abandonados do INSS em residências populares. O Rio seria um dos maiores beneficiados, com 18 imóveis (mais de três mil residências) sendo avaliados pela Caixa, dentre os quais, o prédio da Zumbi. A Prefeitura do Rio garantiu parceria no convênio, incluindo os edifícios no Programa de Reabilitação da Área Urbana Central, cujo objetivo é aumentar o número de residências no centro e na zona portuária e desenvolver as regiões social e economicamente. O INSS, por sua vez, não desistiu do imóvel e prometeu aos ocupantes novas moradias.
No Rio são várias as ocupações urbanas, de Vila Isabel à Baixada, mas, ao lado da Zumbi, a mais proeminente é a Chiquinha Gonzaga, cujo processo judicial já está estabilizado, restando apenas algumas pendências burocráticas. Já na Zumbi, até agora, tudo acabou em samba. Um samba do músico Juvenal Cândido Silva, de 51 anos. "Estamos aqui na Ocupação. Zumbi dos Palmares, é a nossa solução. Tudo organizado com a ajuda do povão. Zumbi dos Palmares é a nossa solução", canta. Uma solução que Juvenal teve de encontrar rapidamente depois que uma bala perdida passou raspando na cabeça do filho, de um ano, e explodiu a televisão de seu barraco no morro da Mangueira.
O hoje
Na ocasião em que Severino e Maria do Socorro fizeram suas reclamações, os ocupantes se preparavam para mais uma assembléia, como fazem todas as segundas, quartas e sextas para discutir problemas do prédio. Mas as reclamações dos atuais sem-tetos não entraram na pauta. Nas últimas reuniões, o debate tem sido em torno de uma punição para reprimir consumo de bebidas alcoólicas no interior do edifício e roubo de objetos, uma vez que a maioria dos moradores não fecha a porta de seus apartamentos. Numa dessas discussões, um ocupante já foi expulso por roubar uma bermuda.
A Zumbi se mantém sob o princípio da autogerência: nos dias de reunião, todo morador tem autoridade para começar a assembléia. Assim, fazem questão de ressaltar que não há líder; todas as decisões são tomadas pelo "Coletivo", que é como chamam as reuniões com os moradores e militantes de apoio. O Coletivo define as comissões encarregadas por diversos setores, como segurança, cadastro, elétrica, hidráulica e finanças. Esta última passou por um grave problema: sobrou dinheiro. Uma confusão com os carnês consumiu horas de reunião, ora embravecidas, ora sem perder a ternura.
"A maioria nunca foi ligada à política. Mais do que lutar por uma moradia, os moradores passam por um processo de formação de consciência política", diz João.
Sindicatos, diretórios acadêmicos e estudantes secundaristas contribuem distribuindo roupa, comida e estudo para as crianças. Outro ponto de pauta debatido atualmente é a Semana da Consciência Negra, planejada para novembro, com exposição de fotos e vídeos do Movimento de Ocupação e da Rede de Luta Contra a Violência, cuja renda será revertida para a Zumbi. Já a renda familiar no prédio varia de R$ 100 a R$ 1000. Os moradores, a maioria camelôs, contribuem com R$ 20 mensais, mas casos de inadimplência ainda são tratados sem impetuosidade. O dinheiro serve para resolver problemas de infiltração e instalação elétrica, mas as prioridades são duas: aquisição de uma bomba para levar água aos apartamentos e reconstrução de estruturas de sustentação.
João conta que, certa vez, faltou R$ 200 das finanças de uma das Ocupações que já participou. O responsável foi descoberto e, em assembléia, decidiram pela sua expulsão. Enraivecido, denunciou que um dos moradores já foi gerente de boca de fumo. Era verdade, mas a história tinha outros meandros: o ex-traficante teria abandonado o morro ao ver o filho, ao lado de amigos, brincando com arma na mão. Sobreviveu catando papelão e dormindo nas ruas com a família. "Conversamos a sós, e ele me contou que tentava dar uma vida diferente ao filho", lembra.
O ontem
O embrião da Zumbi dos Palmares nasceu a partir da Chiquinha Gonzaga, por sua vez, criada por militantes, camelôs e sem-tetos que articularam a ocupação daquele antigo hotel vendido ao Incra onde há 21 anos não existia nada. Ou quase. "Era residência de urubus. Sério, pessoas dormiam nas ruas enquanto um casal de urubus tinha um ninho no último andar", conta João. Quando a ocupação se estabilizou, a notícia se espalhou e um grande número de pessoas apareceu pedindo moradia, dentre os quais Helena (nome fictício), moradora de um morro no centro, que tentava fugir da violência do marido. Com a lotação da Chiquinha, só havia uma solução: ocupar outro prédio.
Foram quatro meses de reuniões à noite em praças e sindicatos para decidir a melhor estratégia. Uma comissão de cinco pessoas ficou encarregada de arrombar a porta principal do prédio, enquanto quase 300 se "esconderiam" pelas redondezas. Eram 2h da manhã quando o plano foi posto em ação. Por longos minutos, a comissão encarregada tentou arrombar a porta, mas acabaram despertando a suspeita de policiais federais, cuja sede fica no quarteirão ao lado. Em busca de outros prédios, o mutirão foi para a Cinelândia e depois para a Lapa, sempre acompanhados por um grande número de viaturas. Uma assembléia feita no Largo da Lapa decidiu que a batalha tinha de ser abortada.
Mas a guerra continuava. Helena, de malas nas mãos e sem poder voltar para casa, morou e se alimentou de favor com os novos companheiros da Chiquinha enquanto o outro plano levou nove meses para ser concebido. Na madrugada de uma terça-feira, a comissão de arrombamento saiu da Chiquinha Gonzaga. Em seguida, a cada minuto saía um grupo de 20 ocupantes, formando um movimento de quase 300 que, juntos, arrombaram os fundos do antigo prédio do INSS. Fora militantes e estudantes apoiando a ação, eram cerca de 100 famílias que, assim como Helena, tinham agora como endereço a Avenida Venezuela 53. Endereço onde, tal como ocorreu na Chiquinha Gonzaga, pessoas como Severino e Maria do Socorro às vezes passam à procura de um lugar melhor para viver.
Na madrugada do dia 26 de abril deste ano, três sem-tetos dormiam sob a marquise do prédio do INSS, no centro do Rio, quando um grupo de cerca de 300 militantes, estudantes, trabalhadores e sem-tetos passou por eles e arrombou a porta do edifício, dando início à Ocupação Zumbi dos Palmares. Os moradores de rua continuam lá, mas agora têm como vizinhos cerca de 120 famílias, muitas com crianças, cuja principal luta é a conquista definitiva de uma residência longe das ruas e do crescente processo de favelização do Rio.
O pescador paraense Severino Ramos, 25, morador das calçadas do edifício há cinco anos, foi uma das pessoas a ter sua "casa" invadida no dia da ocupação do prédio há 20 anos abandonado. Ao seu lado mora a também paraense Maria do Socorro Miranda, 47 anos, 15 deles sob a marquise do mesmo prédio. Cinco meses depois da ocupação, ela entrou em contato com os novos moradores do imóvel: queria reclamar de entulhos arremessados do alto do edifício.
"Já tentei morar ali, mas dizem que não tem mais lugar", afirmam.
São 20 quartos distribuídos em sete andares, alguns transformados em salas de reunião, de estudos e até oficina de serigrafia, cujas camisas com o logotipo da Zumbi já foram para Alemanha e Suíça. No oitavo andar, os moradores tentam retomar obras paradas na época do INSS e construir outros aposentos. Segundo eles, novos moradores devem atender a dois requisitos: participação nas reuniões e concordância com o regimento, que inclui itens como proibição de drogas no interior do edifício e trabalho pela manutenção do local.
Apesar da lotação, muitos não resistem às incertezas ou obrigações do regimento. Assim, o último a entrar para a Zumbi foi Josilésio "Ferrugem" de Almeida, de 42 anos. Ele trabalhava numa Kombi-lanchonete, em Niterói, até que a prefeitura acirrou a repressão aos ambulantes. Veio para o Rio e comprou um "pedaço de chão" por R$ 500 no centro da cidade. Depois de cercar o local e pôr uma lona como teto, não pôde mais pagar pelo espaço ao ter a Kombi rebocada. Nunca tentou resgata-la, sabendo que não teria condições de pagar a documentação atrasada. Dormiu por alguns meses com a mulher e mais três filhos no Campo de Santanna, quando então conheceu a Zumbi através de João de Souza Barbosa, 44 anos, militante desde os 16.
Na luta por moradia no Brasil há até estrangeiros. O peruano José Leonardo (nome fictício) busca asilo político no país depois de sofrer ameaças de morte ao denunciar o governo de Lima, capital do Peru. De 1983 a 1995 ele foi funcionário da Secretaria de Defesa dos Direitos Humanos, até que denunciou ao jornal "La Razon" esquemas de corrupção, violação de direitos humanos e morte de 60 mil camponeses. Trabalhou como motorista até se exilar no Brasil, há 2 anos, ao lado da mulher e três filhos. Depois de morar de favor, encontrou apoio numa das várias ocupações do Estado.
"No Brasil encontrei muita solidariedade. Nem penso mais em sair", diz.
O amanhã
No dia seguinte à ocupação, o INSS entrou com um processo contra a Zumbi, avaliado pela juíza Salete Maria Polita Maccaloz, da 7ª Vara Federal. Um mês depois, a juíza visitou pessoalmente o prédio e constatou um estado de degradação não condizente com o argumento do INSS de que o local recebia manutenção periódica. Além disso, considerando a situação social dos ocupantes, determinou que antes da remoção deverão ser consultados o Conselho Tutelar, em vista do grande número de crianças, o Ministério Público, para garantir os direitos humanos, e a prefeitura para definir um destino às famílias. Atualmente, a conta de água e luz é dividida entre governo municipal, estadual e federal.
Os ocupantes exaltam o artigo 5º, inciso XXIII da Constituição, segundo o qual toda propriedade pública deve ter função social, e o artigo 6º que estabelece a moradia como um direito social. Daí o lema pendurado numa faixa em frente ao prédio: "Se morar é um direito, ocupar é um dever". Ressaltam ainda a promessa de campanha de Lula de que transformaria prédios públicos desativados, principalmente nas áreas centrais degradadas, em moradia para a população mais pobre.
Até o momento, há um convênio entre o Ministério das Cidades e a Previdência Social prevendo a transformação de 1.073 imóveis abandonados do INSS em residências populares. O Rio seria um dos maiores beneficiados, com 18 imóveis (mais de três mil residências) sendo avaliados pela Caixa, dentre os quais, o prédio da Zumbi. A Prefeitura do Rio garantiu parceria no convênio, incluindo os edifícios no Programa de Reabilitação da Área Urbana Central, cujo objetivo é aumentar o número de residências no centro e na zona portuária e desenvolver as regiões social e economicamente. O INSS, por sua vez, não desistiu do imóvel e prometeu aos ocupantes novas moradias.
No Rio são várias as ocupações urbanas, de Vila Isabel à Baixada, mas, ao lado da Zumbi, a mais proeminente é a Chiquinha Gonzaga, cujo processo judicial já está estabilizado, restando apenas algumas pendências burocráticas. Já na Zumbi, até agora, tudo acabou em samba. Um samba do músico Juvenal Cândido Silva, de 51 anos. "Estamos aqui na Ocupação. Zumbi dos Palmares, é a nossa solução. Tudo organizado com a ajuda do povão. Zumbi dos Palmares é a nossa solução", canta. Uma solução que Juvenal teve de encontrar rapidamente depois que uma bala perdida passou raspando na cabeça do filho, de um ano, e explodiu a televisão de seu barraco no morro da Mangueira.
O hoje
Na ocasião em que Severino e Maria do Socorro fizeram suas reclamações, os ocupantes se preparavam para mais uma assembléia, como fazem todas as segundas, quartas e sextas para discutir problemas do prédio. Mas as reclamações dos atuais sem-tetos não entraram na pauta. Nas últimas reuniões, o debate tem sido em torno de uma punição para reprimir consumo de bebidas alcoólicas no interior do edifício e roubo de objetos, uma vez que a maioria dos moradores não fecha a porta de seus apartamentos. Numa dessas discussões, um ocupante já foi expulso por roubar uma bermuda.
A Zumbi se mantém sob o princípio da autogerência: nos dias de reunião, todo morador tem autoridade para começar a assembléia. Assim, fazem questão de ressaltar que não há líder; todas as decisões são tomadas pelo "Coletivo", que é como chamam as reuniões com os moradores e militantes de apoio. O Coletivo define as comissões encarregadas por diversos setores, como segurança, cadastro, elétrica, hidráulica e finanças. Esta última passou por um grave problema: sobrou dinheiro. Uma confusão com os carnês consumiu horas de reunião, ora embravecidas, ora sem perder a ternura.
"A maioria nunca foi ligada à política. Mais do que lutar por uma moradia, os moradores passam por um processo de formação de consciência política", diz João.
Sindicatos, diretórios acadêmicos e estudantes secundaristas contribuem distribuindo roupa, comida e estudo para as crianças. Outro ponto de pauta debatido atualmente é a Semana da Consciência Negra, planejada para novembro, com exposição de fotos e vídeos do Movimento de Ocupação e da Rede de Luta Contra a Violência, cuja renda será revertida para a Zumbi. Já a renda familiar no prédio varia de R$ 100 a R$ 1000. Os moradores, a maioria camelôs, contribuem com R$ 20 mensais, mas casos de inadimplência ainda são tratados sem impetuosidade. O dinheiro serve para resolver problemas de infiltração e instalação elétrica, mas as prioridades são duas: aquisição de uma bomba para levar água aos apartamentos e reconstrução de estruturas de sustentação.
João conta que, certa vez, faltou R$ 200 das finanças de uma das Ocupações que já participou. O responsável foi descoberto e, em assembléia, decidiram pela sua expulsão. Enraivecido, denunciou que um dos moradores já foi gerente de boca de fumo. Era verdade, mas a história tinha outros meandros: o ex-traficante teria abandonado o morro ao ver o filho, ao lado de amigos, brincando com arma na mão. Sobreviveu catando papelão e dormindo nas ruas com a família. "Conversamos a sós, e ele me contou que tentava dar uma vida diferente ao filho", lembra.
O ontem
O embrião da Zumbi dos Palmares nasceu a partir da Chiquinha Gonzaga, por sua vez, criada por militantes, camelôs e sem-tetos que articularam a ocupação daquele antigo hotel vendido ao Incra onde há 21 anos não existia nada. Ou quase. "Era residência de urubus. Sério, pessoas dormiam nas ruas enquanto um casal de urubus tinha um ninho no último andar", conta João. Quando a ocupação se estabilizou, a notícia se espalhou e um grande número de pessoas apareceu pedindo moradia, dentre os quais Helena (nome fictício), moradora de um morro no centro, que tentava fugir da violência do marido. Com a lotação da Chiquinha, só havia uma solução: ocupar outro prédio.
Foram quatro meses de reuniões à noite em praças e sindicatos para decidir a melhor estratégia. Uma comissão de cinco pessoas ficou encarregada de arrombar a porta principal do prédio, enquanto quase 300 se "esconderiam" pelas redondezas. Eram 2h da manhã quando o plano foi posto em ação. Por longos minutos, a comissão encarregada tentou arrombar a porta, mas acabaram despertando a suspeita de policiais federais, cuja sede fica no quarteirão ao lado. Em busca de outros prédios, o mutirão foi para a Cinelândia e depois para a Lapa, sempre acompanhados por um grande número de viaturas. Uma assembléia feita no Largo da Lapa decidiu que a batalha tinha de ser abortada.
Mas a guerra continuava. Helena, de malas nas mãos e sem poder voltar para casa, morou e se alimentou de favor com os novos companheiros da Chiquinha enquanto o outro plano levou nove meses para ser concebido. Na madrugada de uma terça-feira, a comissão de arrombamento saiu da Chiquinha Gonzaga. Em seguida, a cada minuto saía um grupo de 20 ocupantes, formando um movimento de quase 300 que, juntos, arrombaram os fundos do antigo prédio do INSS. Fora militantes e estudantes apoiando a ação, eram cerca de 100 famílias que, assim como Helena, tinham agora como endereço a Avenida Venezuela 53. Endereço onde, tal como ocorreu na Chiquinha Gonzaga, pessoas como Severino e Maria do Socorro às vezes passam à procura de um lugar melhor para viver.